Acho que a tensão começou semana antes do curso feito em SP. Para mim não era um simples acampamento, eu seria o cozinheiro.
O professor, Giuliano Toniolo (especialista em técnicas primitivas e sobrevivência, lembrem-se disso) de inicio relutou com a ideia já que até o momento todos os cursos haviam sido feitos de forma que o aluno inscrito levava, preparava e comia a própria comida, isso sem dúvida seria uma novidade e exatamente por isso eu estava tenso, não pelas minhas capacidades culinárias que conheço bem, mas por alguma ação contraditória que pudesse ocorrer no andamento do evento, sei lá, vai saber, o nome disso de fato é insegurança.
Mas missão dada... foi cumprida, e quem vê as fotos abaixo sequer imagina algumas dificuldades que surgiram dias antes. Esta postagem vai se focar em 3 delas, agua, fogo e sangue.
AGUA:
Foi logo na chegada, assim que descarregamos as tralhas, e eram muitas. Batia um vento que uivava. Escolhemos acampar perto do trabalho em uma confortável grama fofa. Chegamos com 3 barracas sendo duas comuns de 3 lugares e uma delas um apartamento de 6 x3,5 m. O plano seria usar esta ultima como depósito. Os animais usados no curso chegaram com a gente bem como as rações, gaiolas etc. Panelas, louças, ferramentas, alguma comida, cobertores extra, tudo ali acomodado na grama. Não deu tempo para vistoriar todo o campo, a temperatura desabou de súbito e uma chuva fina veio com o vento. Chuva fina, garoa grossa, chuvisco, tanto faz, estávamos relativamente preparados e o material critico bem embalado, mas haviam os animais, e o frio chegou a tal ponto de exigir que procurássemos abrigo e montar as barracas naquele vento foi uma tarefa do cão. Você leitor precisa passar por isso pelo menos uma vez só assim saberá o que molha e o que não molha no processo. Esta chuva durou 36 horas.
FOGO:
Uma semana antes comecei a considerar o clima e não pensei muito em lançar mão de um tubo preparado com combustíveis, são 3 horas de queima, composto por buchas de algodão parafinado e cartuchos de papelão, estopa e tecido de algodão. Não é um kit fogo, é literalmente combustível sólido capaz de esquentar um bando de refeições liofilizadas se nenhuma alternativa mais estiver disponível. Nosso acampamento começaria 5 dias antes do curso e fome não passaríamos. O frio e a chuva deram na nossa cara no primeiro dia, atrapalhou todo o trabalho mas a arrumação seguiu bem. Ele estima que a temperatura chegou a 5 graus aquela madrugada, meu termômetro não lá muito preciso marcava 3. A friaca já estava endurecendo as juntas do corpo e era hora do fogo, na minha opinião sincera, já tinha passado da hora, eu precisava de um café já que o professor pula da cama ás 5 da manhã. Não havia lugar seco ali, buscamos um carramanchão do sitio e fizemos alguns testes com a lenha, mesmo aparentemente seca, ela absorveu umidade do ar e simplesmente o eucalipto não queimava. Nesta hora tome machadada em busca do cerne de madeira menos úmida, resina de pinheiro, buchas de algodão, paina, capim e folhas secas entraram na dança, o fogo não morria por puro talento (e sopros) do Giuliano, mas também não deslanchava para toras maiores. PERSISTÊNCIA, foi de fiapo em fiapo que a brasa ganhou volume. Um soprava outro buscava material, a fumaça demolindo os olhos, depois trocávamos o posto. O clima em nenhum momento ajudou e não economizou agua ou aquele maldito vento molhado que insistia em bater de lado e trocar de lado a vontade vindo por onde a mãe natureza achasse que nos atrapalharia mais. Sim meus amigos, poderia ter sido bem pior, na verdade muito pior, mas foi uma fogueira muito difícil e trabalhosa, daquelas melindrosas que não podem ficar sozinhas e que exigem o posicionamento perfeito de lenha sobre lenha pra não minguar e secar as companheiras. Aquele solzinho nublado começava a bater no vale do sitio quando o café saiu. Não tenho fogareiros a gás, não tenho nada contra também, mas havia lindas toras ali e sou fã de um bom fogo de aquecer pra rebater a friaca da manhã que tava ardida. Também precisávamos das brasas para testar as madeiras colhidas no dia anterior que iam virar tigelas e potes nas mãos dos alunos, e foi cortando estas peças que veio o terceiro tópico desta postagem, o sangue.
SANGUE:
Toras úmidas de madeira mole, fumaça de lenha secando, uma serra circular grande e um caseiro de boa vontade experiente na lida. Mistura tudo. Ele largou o botão cedo demais e a serra deu uma dentada na madeira, estava parando mas ainda forte quando entrou na virilha do homem e abriu até a coxa. O ferimento foi feio, atroz e bizarro, os dentes da serra espalharam cavacos de carne moída e sangue pelo chão. Eu estava chegando no campo nesta hora com um carregamento de bambu e estava mais ou menos a 100 m abertos de distancia. Hahhh leitores foi foda. Alguns dias antes eu tinha preparado a caixa de primeiros socorros, mais que um kit simples pela quantidade de suprimentos, curativos e bandagens, afinal, mais de 20 pessoas estariam reunidas ali e mais de um poderia ter algum problema. Chegamos com a caixa e enquanto o Edu Vichenoss buscava o carro para remove-lo ao PS da cidade, quando cheguei perto e vi o lugar do ferimento gelei, se pegou a veia a coisa ia ficar feia e suja. O homem estava mexendo a perna os dedos, e não sangrava aos borbolhões. Não é hoje que você conhecerá Odin no Valhalla Tonho! Gaze e uma limpeza básica, mais gaze porque o corte devia ter uns vinte centímetros.Mais gaze pra cobrir o absurdo buraco, pois o caseiro estava com a mão imunda comprimindo aquilo, enquanto o carro não chegava resolvi tirar a mão dele de lá e aplicar uma compressa e uma bandagem para acabar com aquele sangue todo escorrendo. Gazes pra segurar e chega o Edu, tudo muito rápido pensando agora, mas na hora parecia uma eternidade. Partiram.
Querem saber se fiquei nervoso cara a cara com o corte? O suficiente para elevar meu índice de alerta ao máximo, buscando por detalhes e processos, mas eu comecei a tremer realmente depois que ele saiu e eu olhei a cena toda, carne moída no chão, a possibilidade de um ferimento muito sério, ou melhor, mais sério mas o que fodeu tudo mesmo foi ver a caixa de socorros exaurida, nesta fração de segundos percebi que os 10 pacotes de gaze, as bandagens e os rolos haviam sido todos usados e se a porra fosse um pouquinho só mais séria eu teria de ter aberto mão de recursos menos convencionais como desmanchar Ob,s e talvez até o kit de sutura que gritava comigo no alto da caixa aberta, shemmag, camiseta, paninhos imundos sei lá, material de curativo mesmo só restou bandaid que pra aquele corte brutal seria como tentar grampear com cabeça de formiga.
Eu não conseguia segurar o caneco com café nas mãos. Duas horas depois eu voltava da farmácia com TUDO dobrado, mais umas compressas de algodão extra. Tudo terminou bem, principalmente porque o homem era algum tipo de zumbi morto vivo imune a dor que saiu capinando a horta assim que chegou da sutura no PS, 42 pontos, internos e externos somados. Sorte que haviam testemunhas.
Esta postagem relata experiências reais vividas durante um acampamento, fora outras menos relevantes aborda três pontos críticos, estar com sua tralha preparada pra chuvas súbitas, manter sua pericia com fogo em dia, não só para acender mas para mantê-lo e rever seu kit de primeiros socorros, o corte brutal que seu Antonio sofreu podia ter ocorrido em qualquer outra localidade, sorte que foi no Sítio que embora seja afastado oferecia acessos fáceis e carro perto, se fosse na mata mais fechada ou com longos trajetos a pé, por conta de uma machadada errada, um resvalo de facão ou uma faca descuidada 90% dos kits pessoais de primeiros socorros que eu vejo nas publicações e vídeos que acompanho não dariam conta por pura escassez de recursos, entre limpar, trocar curativos empastados de sangue e prender a coisa toda em certas partes do corpo, não, em momento nenhum acredite que isso não pode acontecer com você ou com um amigo ou parente próximo, gazes e faixas tem peso desprezível e de hoje em diante ganharam uma outra conotação para este sobrevivencialista com muito mais peso no sentido da importância de seu uso.
Sr Antonio é um lenhador experiente, caboclo duro e traquejado nesta lida a anos.
A clássica pergunta no fim de cada postagem, como andam suas habilidades e se você está preparado para lidar com sangue demais? A realidade é dura né.
Fato, como em um segundo vemos toda a preparação ir para o ralo. O bom é que aprendemos muito com essas experiências quase trágicas. Cheguei na sexta-feira a noite no evento e pude ver, no sábado, o tal ferimento citado,...de gelar a espinha. Fato, o Tonho (caseiro) é bruto mesmo, estava lá, andando normalmente, com um rolo de sutura na perna. :) Selvaaaaa
ResponderExcluirÓtimo relato! Por essas e outras que temos sempre que bater forte na tecla do treinamento em primeiros socorros. Se eu tivesse tempo até faria um curso técnico em enfermagem... Parte para aprender algumas técnicas, parte para me desensibilizar com cenas como essa que você presenciou. Claro, na hora o foco aparece e viramos quase que robôs autômatos para resolver o problema, seja qual for sua natureza... o problema, como você mesmo pode perceber, é depois. É quase como um "mini estresse pós traumático", que se não bem interpretado pode piorar exponencialmente.
ResponderExcluirDe qualquer maneira, ótima lição, eu mesmo vou aumentar meu estoque de gazes depois desse post.
Abraço!
sei bem como é já passei por dois acientes com meus pais ainda bem que deu tudo certo.
ResponderExcluirparabens pelo trabalho assistindo seu canal estou me tornando sobrevivencialista
De repente alguém diz: Mas o Batata dimensionou mal o kit de primeiros socorros! Gente, o cara é chefe escoteiro, acostumado a montar acampamento pra um monte de gurizada propensa a acidentes. É claro que o kit estava bem dimensionado! O puro fato é que por mais preparados que estejamos, o imprevisto sempre pode nos surpreender. Como reagir quando as coisas saem fora do previsto? Sangue frio é somatória de condicionamento físico e psicológico! Treinar e mesmo assim não achar que se está garantido. Muitas lições a serem aprendidas. Obrigado por dividir!
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