quinta-feira, 24 de outubro de 2013

Eles desligaram tudo, e agora?

Foi só uma marolinha.
No primeiro mês, nosso principal cliente nos avisou que atrasaria o pagamento da nota, mas que arcaria com multas, juros etc.
No segundo mês, outros dois clientes fizeram a mesma notificação e um outro cancelou o contrato.
No terceiro mês, 7 dos meus oito clientes cancelaram o contrato, todos dispostos a pagar juros e multas.



No primeiro mês, eu estava preparado para eventuais atrasos de pagamento, a empresa embora pequena e modesta  tinha um bom caixa, e sem pensar muito honramos os pagamentos e ainda mantivemos nosso pro labore.
 No segundo mês, fechamos no vermelho, não sobrou muito, mas conseguimos quitar todas as contas de casa e da empresa.
No terceiro mês esgotamos nossas reservas, mas cumprimos as principais obrigações, como folha de pagamento.

O quarto mês coincidiu com o mês de gravidez da minha esposa, lá estava o Will batatinha crescendo e esparramando pelo chão, o mercado foi minguado, estávamos construindo nossa casa e ainda faltava muito, mas tivemos que congelar a obra. Conseguimos vender o carro e saldar obrigações com funcionários e prestadores de serviço. A sobra foi de exatamente R$ 850,00.


Já havia uma horta, pequena e plantada sem compromisso, um hobby na verdade, alguns pés de couve, alfaces, rúcula, as abóboras estavam crescidinhas e produzindo, também tinha milho de pipoca, rabanetes, beterrabas, chuchu e pepino na cerca. Tudo pouco e com espaçamentos errados, fora de esquadro. Foi neste mês que eu cobri os espaços, tirei o mato e ampliei os antigos canteiros, gastei menos de R$ 50, minha pá de camping acabou se tornando a minha única ferramenta de roça naquele mês. Comprei 10 pintinhos, 10 frangolas de 35 dias e 4 galinhas adultas, o resto gastei em sementes, e uma saca de milho de 20 kg.

No quinto mês a crise bateu forte e muita gente na cidade perdeu o emprego, a verba do mês foi de meio salário mínimo, um pouco menos, contas atrasa uma, paga outra, mas a agua escapou e na pior fase da crise eles simplesmente desligaram. Nunca imaginei um dia chegar ao ponto de quase implorar pra um funcionário publico... "Desculpa patrão, mas tem que pagar a conta né".

Esta semana choveu, e a agua veio com uma fúria ímpar. Foi a salvação da lavoura literalmente, mas só quem depende do que planta para viver sabe como é vigiar cada mudinha, cada folha, e a cada refeição ir dar uma olhada para ver se aquele alface "já tá bom pra comer" e os estragos que tempestades fazem nas hortas, lembro de ficar lá, meia hora na chuva, olhando uma couve com o talo quebrado pelo vento e amaldiçoar minha preguiça, ou burrice por não ter amarrado o caule longo numa estaca firme de madeira.

Chegar acabado em casa as 3 da manhã e ir reforçar sombrite de horta doméstica no meio de um temporal não é tarefa das mais fáceis, ainda mais quando você descobre que a energia foi cortada e está num escuro absoluto.

Há de se cuidar muito nesta hora para não fazer uma cagada, como assumir uma divida impossível de quitar ou até coisa pior. Depois de uma semana de corte eu enfiei a marretada na trava da válvula que impedia o abastecimento de agua, é ilegal, eu estava errado e que isso não sirva de exemplo pra ninguém, mas na hora eu julguei que um estado que priva seres humanos de algo impossível de se abster, pois sem agua não há vida, não merecia muita ética de minha parte. Por 3 semanas eu desci alguns metros de minha casa e voltei com um carrinho de mão cheio de lenha, dia sim, dia não e o fogão a lenha funcionou até trincar, já que o gás não tinha prazo pra ser restabelecido. Por sorte haviam muitas obras na época e consegui muitos tocos de telhado e tábuas quebradas de construção sem muito esforço.

Eu estudei gastronomia por Hobby e peguei o diploma porque meu curso de hotelaria "matava" matérias, e consegui uma bolsa por aptidão, por incrível que pareça, me dei conta que meus até então hobbies estavam salvando minha pele. Foi fácil conseguir alguns trabalhos em cozinha, no almoço em um restaurante self service e a noite em Buffets de eventos. Não tive vergonha nenhuma de dizer ao dono do negócio minha condição e meu almoço era uma marmita que levava pra casa, nos buffets muitas vezes D. Batatinha ia como ajudante.

Dezembro passou assim, não tinha sequer uma moeda no bolso nas festas de fim de ano, zero luxo e nada de presentes pra ninguém.

Aprendi algumas coisas.
O estado não vai te ajudar em nada, muito pelo contrário, vai cortar sua agua, desligar sua energia e se puder leiloar sua casa, seu carro e seus bens. Em janeiro, os registros de minhas armas venceram, eu era bandido além de tudo e não ia deixar de comprar algo pra minha esposa grávida pra renovar, então fui obrigado a me desfazer delas, note que registrar as espingardas que foram de meu avô já foi uma trabalheira épica. Eu tive que transferi-las para um colecionador para não ir preso. Era só o que me faltava.

Outra coisa que aprendi é bater de volta, isso mesmo, nunca a vida tinha me forçado a uma reação tão radical e intensa e porque não prolongada. Meu trabalho em hospitais de SP me mostraram exatamente o que são barreiras irreversíveis, como uma doença incurável e a morte, de resto meu chapa, não há obstáculo que não se possa atravessar, e descobri no sobrevivencialismo uma forma de ter sempre uma escada, uma pá afiada e um forte machado pra me ajudar a vencer estas barreiras doidas que a vida impõe, e se ela me bater novamente, eu vou reagir com muito mais força e preparo.

Espero que nenhum de vocês leitores cheguem ao ponto de ver tudo ser desligado, mas se o acaso impor esta barreira, estejam preparados para revidar e aguentar as pontas, e tenham em mente que certas atividades que parecem um simples hobby, podem amanhã serem fatores de desequilíbrio numa situação de crise e pender a balança para seu lado.

Ps.: Muita coisa mudou, e quase tudo voltou aos eixos, e se tem algo que nunca deixei de fazer foi trabalhar de cozinheiro... Nunca se sabe o dia de amanhã né...
 

Abraços.

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